Comer carne na sexta feira é pecado mortal ou não?


Ao contrário do que pensam muitos católicos, não é apenas na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa que devemos nos abster de comer carne. Todas as sextas-feiras do ano são penitenciais e em todas elas devemos unir-nos à Paixão de Cristo, fazendo algum sacrifício por amor a Deus.

Naquele tempo, os discípulos de João aproximaram-se de Jesus e perguntaram: "Por que razão nós e os fariseus praticamos jejuns, mas os teus discípulos não?"

Disse-lhes Jesus: "Por acaso, os amigos do noivo podem estar de luto enquanto o noivo está com eles? Dias virão em que o noivo será tirado do meio deles. Então, sim, eles jejuarão".

O Evangelho nos fala hoje de um assunto bastante pertinente a estes quarenta dias de preparação para a Páscoa do Senhor: o jejum. Aproveitemos essa leitura para refrescar um pouco a memória a respeito do quarto mandamento da Igreja: "Jejuar a abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja" (CIC 2043). Todos os cristãos, com efeito, são obrigados por lei divina (ex lege divina) a fazer penitência. Por isso a Igreja, a fim de ajudar seus filhos a bem cumprir a vontade de Deus, prescreve alguns dias e tempos especiais em que os fieis, unidos em alguma "observância comum de penitência" (CDC, cân. 1249), possam observar com fidelidade as obrigações que o próprio Senhor lhes impõe, além de participar de modo mais concreto do mistério pascal de Cristo Jesus.

 

 

Nesse sentido, o Código de Direito canônico determina que, exceptuadas as que porventura coincidirem com alguma solenidade (o Natal, por exemplo), todas as sextas-feiras do ano são dias penitenciais na Igreja universal (cf. CDC, cân. 1250). A Constituição Apostólica Paenitemini, promulgada aos 17 de fevereiro de 1966 pelo Papa Paulo VI, também obriga os fieis a se absterem de carne todas as sextas-feiras do ano, a não ser que nelas se celebre alguma festa de preceito (cf. II, § 3.º).

É preciso ter em mente, além disso, que a observância dessa norma é de natureza grave, ou seja: o seu descumprimento constitui um pecado mortal. A própria Constituição Paenitemini faz questão de o ressaltar (cf. II, § 2.º): "A sua observância substancial [isto é, dos dias de penitência] obriga gravemente" (eorum substantialis observantia graviter tenet). Trata-se, portanto, de um mandamento da Igreja que nos obriga sub gravi, isto é, sob pena de pecado mortal. Por isso, é aconselhável a todos os que, seja por ignorância ou falta de deliberação plena, não têm observado o preceito de abstinência às sextas-feiras procurem o tribunal da Confissão e se conformem, de agora em diante, às salutares leis da Santa Madre Igreja.

 

 

O Decreto Christus Dominus (cf. n. 38, 4), no entanto, bem como o atual Código de Direito Canônico, deu às Conferências Episcopais a possibilidade de comutar, total ou parcialmente, a abstinência de carne por "obras de caridade e exercícios de piedade" (cân. 1253). Sendo assim, a CNBB permitiu que, em todas as sextas-feiras do ano, os fieis comutem a abstinência de carne por outras práticas penitenciais ou exercícios piedosos: "A abstinência pode ser substituída pelos próprios fiéis por outra prática de penitência, caridade ou piedade, particularmente pela participação nesses dias na Sagrada Liturgia". Lembremos, porém, que permanece a obrigação do jejum na Sexta-feira Santa. É importante salientar por último que se trata aqui de obras a mais, quer dizer, que já não façam parte de nossas orações habituais (por exemplo, o Terço diário, o Angelus, entre outras) e que façam da sexta-feira um dia especial, no qual possamos, com amor e generosidade, associar-nos à Paixão de Cristo, às dores e sofrimentos pelos quais o Verbo humanado trouxe vida a este mundo corroído pelo pecado.

Muitos haverão de estranhar a pergunta, pois, aparentemente, caiu em completo desuso a proibição de se comer carne na sexta-feira. No entanto, pela legislação atual da Igreja, essa determinação ainda é válida e está, portanto, em pleno vigor.

Abster-se de carne e jejuar na sexta-feira é uma prática plurissecular da Igreja e tem argumentos fortes em seu favor. O primeiro deles é que todos os cristãos precisam levar uma vida de ascese. Esta é uma regra básica da espiritualidade cristã.

Por meio de tal prática é que se pode alcançar com frutos a virtude da temperança, definida pelo Catecismo da Igreja Católica como sendo a "virtude moral que modera a atração pelos prazeres e procura o equilíbrio no uso dos bens criados"[01]. Ela assegura o "domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade"[02].

 

 

Santo Tomás de Aquino diz que o “jejum foi estabelecido pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, cujo objeto são os prazeres sensíveis da mesa e das relações sexuais"[03]. Importante recordar que, na época de Santo Tomás, a disciplina exigia esta prática não só na sexta-feira, mas também na quarta e, além da carne, englobava os ovos e os laticínios.

Historicamente, fazer da sexta-feira um dia penitencial é algo que afunda suas raízes na época apostólica. A Didaqué, uma espécie de catecismo dos primeiros cristãos, dá conta de que o jejum era feito na quarta e na sexta-feira. A Igreja do Oriente, inclusive, permanece com esse costume.

Os Santos Padres também incentivaram sobremaneira este hábito que acabou se consolidando. No entanto, na Idade Média, o Papa Nicolau I, no século IX, instituiu como lei aquilo que era somente um costume. E, assim, a penitência passou a ser obrigatória para todos os cristãos a partir da idade da razão (sete anos).

Ainda no período medieval, em honra à Nossa Senhora, as pessoas passaram a jejuar também aos sábados. Deste modo, o domingo, grande Dia do Senhor, era precedido por dois dias de penitência, em preparação à Páscoa semanal.

Como a Igreja tem seus altos e baixos, tal costume se arrefeceu com o tempo e, inclusive, os fiéis passaram a se questionar acerca da obrigatoriedade da abstinência na sexta e se a não observância desse preceito se constituía um pecado mortal ou leve. Diante disso, o Papa Inocente III, no século XIII, decretou que realmente é pecado grave. E no século XVII, o Papa Alexandre VII anatematizou quem dissesse que não era pecado grave.

Essa foi a disciplina até 1983, quando houve a promulgação do novo Código de Direito Canônico. No cânon 1251, lemos que é obrigatório fazer “abstinência de carne ou de outro alimento [...] em todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades". Com relação a este cânon, a CNBB afirma que o fiel católico brasileiro pode substituir a abstinência de carne por uma obra de caridade, um ato de piedade ou ainda trocar a carne por um outro alimento[04].

Atualmente, a exigência da lei é para aqueles que já completaram catorze anos de idade e não a partir da idade da razão, como era no início, conforme o cânon 1252 do mesmo Código.

Abster-se de carne e jejuar na sexta feira, além de fazer bem para a vida espiritual do fiel, pode ser uma ocasião de testemunho e de catequese para outros. Recusar publicamente, por amor a Cristo, tal prazer pode ser uma forma de incutir no próximo o desejo de também conhecer o Amado, por quem se faz sacrifícios.

Por fim, é importante recordar que o costume de se abster de carne na sexta-feira sempre esteve ligado à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto, é mister recuperá-lo a fim de aumentar ainda mais a devoção e a própria configuração Àquele que deu seu Sangue e sua vida por amor a nós, pobres criaturas. E, assim, como não amar de volta? Como não recordar - na sexta-feira - o grande amor que salvou a humanidade?

Referências

  1. Catecismo da Igreja Católica, Edição revisada de acordo com o texto oficial em latim, 9ª edição, número 1809
  2. Idem
  3. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II, II, q. 147, a. 8
  4. CNBB, Diretório da Liturgia e da organização da Igreja no Brasil, 2010