A exclamação de Jesus durante sua agonia, relatada nos evangelhos – “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mt 27,46; Sl 21) – não foi um grito de desespero, mas o começo de um dos salmos mais profundos do Saltério, que Ele, como bom judeu, conhecia muito bem.
Deus abandonou Jesus na cruz porque nesse momento Jesus tomou sobre si todos os pecados do mundo (1 Pedro 2:24). O pecado separa de Deus. Jesus estava se identificando com cada pecador quando disse que Deus o tinha abandonado.
Quando Jesus disse “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?”, ele tomou o lugar de cada um de nós. Por causa do pecado, todos nós ficamos separados de Deus. Mas agora, por causa do sacrifício de Jesus na cruz, podemos voltar a estar unidos com Deus!
Jesus duvidou de Deus na cruz?
Não, Jesus não duvidou de Deus na cruz. Ele estava expressando a dor da separação que o pecado causa. Muita gente pergunta porquê quando está sofrendo. Jesus sabia que iria ressuscitar, mas naquele momento a dor era terrível (Marcos 15:33-34). Na cruz Jesus mostrou que ele entendia toda nossa dor. O grito de Jesus era um grito de socorro.
Salmo 22
O Salmo 22 é um salmo profético, escrito pelo rei Davi centenas de anos antes, sobre o sofrimento e a vitória de Jesus. Quando Jesus citou esse salmo, ele estava dizendo que a profecia estava se cumprindo. O Salmo 22 profetizou que:
* Jesus iria ser zombado – Salmos 22,7-8; Mateus 27,41-43
* As mãos e os pés de Jesus iriam ser furados – Salmos 22,16; João 20,25-27
* Pessoas iriam lançar sortes para ficar com sua roupa – Salmos 22,18; João 19,23-24
* No fim muitas pessoas iriam louvar a Deus – Salmos 22,26-28; Filipenses 2,9-11
O grito de Jesus - “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” - é como começa Salmos 22. Além de expressar sua dor, Jesus estava citando esse salmo.
O Papa Bento XVI propôs uma reflexão sobre este texto, em seu ciclo de catequeses sobre a oração, destacando que o salmo 22/21 constitui “uma oração sincera e comovente, de uma densidade humana e uma riqueza teológica que o convertem em um dos salmos mais rezados e estudados de todo o Saltério”.
Nele, apresenta-se a “figura de um inocente perseguido e cercado por adversários que querem a sua morte; ele recorre a Deus, em um lamento doloroso que, na certeza da fé, se abre misteriosamente ao louvor”.
Seu grito inicial, que é o que os evangelhos de Mateus e Marcos colocam na boca do moribundo Jesus, “é um chamado dirigido a Deus, que parece distante, que não responde e que parece tê-lo abandonado”.
Nele, “Deus parece muito distante, muito esquecido, muito ausente. A oração pede escuta e resposta, solicita um contato, busca uma relação que possa dar-lhe consolo e salvação. Mas, se Deus não responde, o grito de ajuda se perde no vazio e a solidão se torna algo insuportável”.
Apesar disso, “o salmista não pode acreditar que o vínculo com o Senhor tenha se rompido totalmente e, enquanto pede um porquê do suposto abandono incompreensível, afirma que o ‘seu’ Deus não pode abandoná-lo.”
No Gólgota
Na boca de Jesus, este “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” expressa “toda a desolação do Messias, Filho de Deus, que está enfrentando o drama da morte, uma realidade totalmente contraposta ao Senhor da vida”.
“Abandonado por quase todos os seus, traído e negado pelos seus discípulos, cercado pelos que o insultam, Jesus está sob o peso esmagador de uma missão de deve passar pela humilhação e pelo aniquilamento. Por isso, grita ao Pai e seu sofrimento assume as palavras dolentes do salmo.”
Mas o Papa sublinha que “o seu não é um grito desesperado, como foi o do salmista, que, em sua súplica, percorre um caminho atormentado que chega finalmente a uma perspectiva de louvor, na confiança da vitória divina”.
O autor do salmo “vê como se põe em dúvida sua relação com o Senhor, a ênfase cruel e sarcástica dos que estão lhe fazendo sofrer: o silêncio de Deus, sua aparente ausência. No entanto, Deus está presente na existência do orante com uma proximidade e uma ternura inquestionáveis”.
Em certo momento, prosseguiu o Papa, “o orante evoca sua própria história pessoal de relação com o Senhor, remontando-se ao momento particularmente importante do início da sua vida. E lá, não obstante a desolação do presente, o salmista reconhece uma proximidade e um amor divino tão radicais, que agora pode exclamar, em uma confissão cheia de fé e geradora de esperança: ‘Desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus"”.
As imagens usadas no salmo, descrevendo os agressores como bestas ferozes, “servem para dizer que, quando o homem é um ser brutal que agride seus irmãos, algo animal o possui, parece perder sua aparência humana; a violência tem algo de bestial e somente a intervenção salvadora de Deus pode restituir a humanidade ao homem”.
Diante deles, o salmista pede socorro, em “um grito que abre os céus, porque proclama uma fé, uma segurança que vai além de toda dúvida, de toda escuridão e de toda desolação. E o lamento se transforma, dá lugar ao louvor no acolhimento da salvação”, disse Bento XVI.
“Este salmo nos levou ao Gólgota, aos pés da cruz, para reviver sua paixão e compartilhar a alegria fecunda da ressurreição. Deixemo-nos invadir pela luz do mistério pascal e, como os discípulos de Emaús, aprendamos a discernir a verdadeira realidade, muito além das aparências, reconhecendo o caminho da exaltação na humilhação e a plena manifestação da vida na morte, na cruz.”
“Assim, colocando novamente toda a nossa confiança e esperança em Deus Pai, no momento da angústia, poderemos rezar-lhe com fé também nós, e nosso grito de auxílio se transformará em cantos de louvor”, concluiu o Santo Padre.
Nessa sua queda e tribulação, saiba que Deus não abandonou você
O Catecismo da Igreja Católica, do número 410 ao número 412, ensina-nos que “depois da queda, o homem não foi abandonado por Deus. Ao contrário, Deus o chama e lhe anuncia de modo misterioso a vitória sobre o mal e o soerguimento da queda”.
Como entendê-lo? — É à luz dessa profunda doutrina, tão certa quanto segura, que se deve entender todo o episódio da Paixão, inclusive aquelas palavras do Crucificado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, interpretadas por muitos autores modernos num sentido inaceitável e incompatível com a doutrina da Igreja. Sem a pretensão de desvelar o mistério que aqui se oculta, é-nos permitido, como diz o Concílio Vaticano I [2], buscar alguma compreensão e inteligência desse fato, isto é, da dor e angústia vividas pelo Redentor com inigualável intensidade e, ao mesmo tempo, da felicidade e paz que sempre reinaram inconcussas em sua alma. Antes, porém, de apresentarmos a explicação tradicional deste ponto, convém deixar claro o seguinte:
a) Jesus, por ser essencialmente impecável, não suportou os tormentos da Paixão a título de pena. Todo o mistério de sua dolorosíssima agonia, portanto, não é penal nem tem a finalidade substitutiva que lhe atribuíam alguns hereges calvinistas, como vimos na aula anterior.
b) Pela mesma razão, Cristo não incorreu em pecado de desespero, como poderia supor quem lesse, sem a devida atenção ao contexto, suas últimas palavras: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” [3] Santíssimo não só em razão da união hipostática, mas também pela virtude santificadora da visão beatífica, Jesus nunca poderia crer-se “abandonado” por Deus.
c) Isso não impede que a parte inferior de sua alma, isto é, a parte de sua natureza humana em estado de via, tenha experimentado, para complemento da obra redentora, a desolação que nós muitas vezes sentimos, quando somos por algum motivo privados da presença consoladora de Deus.
d) Tampouco se deve pensar que, na cruz, Jesus tenha suportado as penas do inferno. Isso não só carece de fundamento nas Escrituras como contradiz o que vimos anteriormente: Jesus não poderia suportar a pena de dano, que é a privação e aversão definitivas de Deus, fim último sobrenatural, porquanto a sua humanidade gozava, pela visão beatífica, da posse face a face do mesmo Deus; nem a pena de sentido, infligida ao réprobo como parte do castigo pelos pecados atuais em que morreu impenitente [4].
Como, então, compreender essa íntima união em Cristo padecente da paz com a angústia, da alegria com a tristeza, do gozo com a dor? Trata-se — vale a pena repetir — de um dos pontos mais altos do mistério da Redenção, que constitui não só um milagre, mas um mistério essencialmente sobrenatural, cuja evidência intrínseca nos permanece oculta nesta vida [5], não nos cabendo outra “saída” além da dócil obediência da fé: é fato que, não obstante a suma tristeza que o invadiu, Nosso Senhor manteve sempre a paz em meio aos sofrimentos físicos e morais mais atrozes já vistos em um ser humano. Prova disso são os vários testemunhos que Ele mesmo deu, no Horto e durante a Paixão, de sua plena conformidade com a vontade divina e da intenção sacrificial com que se entregava à morte por nós: “Tudo está consumado” (Jo 19, 30) e “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46).
A explicação teológica mais coerente desse fato é a proposta por S. Tomás de Aquino:
Em sentido contrário, está o que diz Damasceno em De fide orth. III, a saber: que “a divindade de Cristo permitiu à carne fazer e padecer o que lhe era próprio” [...]. Deve-se dizer que, como foi dito antes, a alma como um todo pode entender-se (1) ou segundo a essência (2) ou segundo todas as suas potências. Pois bem, (1) se se entende segundo a essência, toda a alma <de Cristo> gozava, enquanto é sujeito da parte superior da alma, à qual compete fruir da divindade, de modo que, assim como a paixão se atribui à parte superior da alma em razão da essência, se atribua a fruição à essência em razão da parte superior da alma. (2) Se, no entanto, tomarmos a alma como um todo em razão de todas as suas potências, então não gozava a alma toda, a) nem diretamente, porque a fruição não pode ser ato de qualquer uma das partes da alma, b) nem por redundância, porque, enquanto Cristo era viandante, não redundava a glória da parte superior para a inferior nem da alma para o corpo. No entanto, uma vez que a parte superior da alma não era impedida pela inferior quanto àquilo que lhe era próprio, segue-se que a parte superior da alma gozava perfeitamente enquanto Cristo padecia (STh III 46, 8 sc. e c.).
Em outras palavras, a alma de Cristo tomada como um todo segundo sua essência, isto é, enquanto está presente em sua totalidade no corpo inteiro e em cada uma de suas partes e faculdades, gozava e era, portanto, sumamente feliz; tomada, porém, como um todo por simultaneidade de suas potências, podia realmente padecer, na medida em que Ele, por especial e voluntária dispensação, impedia a redundância conatural da glória beatificante de que fruía na potência mais alta da alma — chamada de “razão superior” (ratio superior) — sobre as potências anímicas inferiores (suscetíveis, portanto, aos influxos passionais de dor e tristeza correspondentes ao estado de viandante) e sobre o corpo (sujeito, pela mesma razão, ao sofrimento e à morte física). Há nisso união de contrários extremos, mas nenhuma contradição. Com efeito,
[…] repugna que haja, ao mesmo tempo, suma alegria e tristeza onde há somente um modo de conhecimento e volição, correspondente ao estado de compreensor; no entanto, onde há, além dele, um modo de conhecimento e volição correspondente ao estado de viandante, dizemos ser possível haver suma alegria do objeto principal e dos secundários nele contidos da visão beatífica e, ao mesmo tempo, tristeza e dor de outros objetos, apreendidos pelo conhecimento (quer infuso, quer adquirido) de viandante. De fato, repugna absolutamente que haja, ao mesmo tempo, alegria suma e tristeza de uma mesma coisa e pelo mesmo motivo; mas não repugna absolutamente que, num mesmo sujeito, haja simultaneamente alegria e tristeza de objetos diversos e por diversa razão. Não repugna absolutamente, no sentido de que nem Deus onipotente poderia constituir um homem nesse duplo estado; seja como for, concedemos sem dificuldade que, conaturalmente e per se, a visão e fruição beatificas excluem toda dor e toda tristeza. Suposta, porém, a coexistência <em Cristo> desses dois estados, o de compreensor não apenas não impediu ou diminui, senão que aumentou e intensificou enormemente a dor e a tristeza de <Cristo> viandante, na medida em que a visão e o amor de <Cristo> compreensor influíam para lhe aperfeiçoar o conhecimento e a volição também em estado de viandante. Daí se vê que, por influxo da divindade, na presente economia do Redentor, a Paixão de Nosso Senhor não só não diminuiu como foi intensificada quase ao infinito [6].
54. Corolários. — 1.º Cristo, enquanto compreensor, não podia padecer na razão superior, isto é, na “região” mais alta de sua inteligência e vontade, onde fruía da visão facial da essência divina; mas, como viandante, não se limitou a sofrer no apetite sensitivo, senão que padeceu também na chamada razão inferior (ratio inferior), ou seja, na mesma potência racional enquanto voltada para as coisas temporais e, portanto, subordinada às verdades eternas na ordem especulativa, das quais toma, na ordem prática, seus princípios de ação. Logo, Cristo sofreu realmente pelos nossos pecados como algo temporal (quid temporale), isto é, como ofensas a Deus; mas, à luz de sua razão superior beatificada, via com singular clareza toda a maldade e malícia deles e podia, por isso mesmo, entristecer-se com mais profunda e redentora tristeza.
2.º Essa mesma apreensão da maldade do pecado humano supunha, por sua vez, a compreensão do altíssimo desígnio por que Deus permite o pecado, a saber: para deles tirar um bem superior, que é a manifestação de sua infinita misericórdia e do esplendor de sua santíssima justiça, o que aumentava ainda mais em seu Coração o desejo de padecer por nós até a tristeza mortal, a fim de oferecer a Deus um sacrifício pleno e consumado, expressão de sua misericórdia e fonte meritória de nossa justificação.
Fonte: https://cleofas.com.br/papa-o-meu-deus-por-que-me-abandonastes-de-jesus/