É comum ouvir a expressão “Cristo morreu na cruz por nós", mas o que ela significa? Como funcionou, na prática, a redenção dos pecados da humanidade através da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz?
No Antigo Testamento animais eram sacrificados, pois havia uma aliança entre Deus e o povo de Israel, na qual esses deveriam cumprir a referida aliança obedecendo à Lei. Cabia ao povo ser fiel, todavia, a Lei era muitíssimo rígida, tanto que era quase impossível cumpri-la à risca. Deste modo, foram criados mecanismos para a chamada “expiação", por meio da qual o povo seria redimido de suas faltas.
Um dia no ano era dedicado à expiação - o Yom Kipur. O Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos, lugar mais sagrado do Templo - onde pronunciava o nome de Deus e aspergia o propiciatório com o sangue das “vítimas". O propiciatório, por sua vez, era o lugar onde Deus estava.
O sangue significava que o homem merecia, de fato, a morte, pois não obedera a Lei. Ao jogar o sangue cheio das misérias naquele lugar santo, ele se tornava purificado por causa da presença de Deus. O Santíssimo (Deus) purificava o sangue (povo).
Ora, logo os profetas passaram a denunciar a insuficiência desses cultos e sacrifícios. Era evidente que o sangue de touros, bodes e carneiros não purificava nada. O sacrifício era sempre incompleto e precisava ser repetido todos os anos.
Era desejo de Deus que os homens O obedecessem, que cumprissem a Lei plenamente. E, para que o povo honrasse a Aliança era necessário que tivesse um novo coração. Foi o profeta Ezequiel que deu a chave: “ Dar-vos-ei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e voz darei um coração de carne" (36,26).
O Antigo Testamento se fecha, portanto, com essa grande expectativa: um coração novo! E a promessa se cumpriu em Jesus Cristo. Deus se fez homem para dar ao homem um coração novo, um coração obediente que realizou a Lei completamente e a Aliança Perfeita. A união perfeita entre Deus e o homem acontece na pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. O Catecismo da Igreja Católica resume de forma magistral esta realidade:
Quando São Paulo diz de Jesus que “Deus o destinou como instrumento de propiciação, por seu próprio Sangue, quer afirmar que na humanidade deste último “era Deus que em Cristo reconciliava consigo o mundo. (433)
Jesus é o propiciatório! Ao derramar Seu sangue na Cruz, o sangue da vítima toca o propiciatório, por assim dizer e ali acontece o sacrifício expiatório definitivo, posto que perfeito. Na Cruz, o puro e imaculado que é Jesus, toma sobre si os pecados da humanidade. Não mais simbolicamente, como no Antigo Testamento, mas de forma real. A miséria, o pecado, a desgraça, a morte tocam no propiciatório que é Jesus e tudo é lavado, purificado, liberto. Para isso é que foi necessária a morte de Cristo na Cruz.
Jamais o mundo viu ou verá um acontecimento como este: o Filho de Deus humanado é crucificado e agoniza durante três horas numa cruz. Três longas horas de dores indizíveis, sofrimentos inenarráveis na pior forma de suplício que o Império Romano impunha a seus opositores, bandidos, malfeitores… Foi o drama de um Deus crucificado por amor ao homem, criatura moldada à Sua “imagem e semelhança” (cf. Gen. 1,26).
Um mistério insondável de amor e de dor que projeta luz sobre o quanto cada um de nós é importante para Deus. Cristo não mediu esforços para resgatar cada um de nós para Deus… foi até as últimas consequências. São João expressou isso como ninguém: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 15,1).
A dívida dos pecados dos homens, sendo, de certo modo infinita, exigia um sofrimento redentor também infinito para reparar a ofensa contra a majestade infinita de Deus. Então, o sofrimento de Deus feito homem, infinito, triunfou do pecado. O resgate de cada um de nós foi pago. Pelo sofrimento de Jesus, Homem e Deus, a humanidade honrou a Deus incomparavelmente mais do que O ofendera e poderá ainda ofender. O homem, resgatado agora pelo Filho do Homem, pode voltar para os braços de Deus. A justiça foi satisfeita.
Podemos perguntar: mas por que foi necessário que um Deus morresse na Cruz para nos salvar? São Leão Magno (400-461), Papa e doutor da Igreja, nas suas homilias de Natal, lança luzes sobre o mistério da nossa Redenção:
“Mas, o fato, caríssimos, de Cristo ter escolhido nascer de uma Virgem não parece ditado por uma razão muito profunda? Isto é, que o diabo ignorasse que a salvação tinha nascido para o gênero humano, e, escapando-lhe que a concepção era devida ao Espírito, acreditasse que não tinha nascido diferente dos outros aquele que ele não via diferente dos outros.
Com efeito, aquele no qual ele constatou uma natureza idêntica à de todos tinha, pensava ele, uma origem semelhante à de todos; ele não compreendeu que estava livre dos laços do pecado aquele que ele não viu isento das fraquezas da mortalidade. Porque Deus, que, em sua justiça e em sua misericórdia, dispunha de muitos meios para elevar o gênero humano, preferiu escolher para isso a via que lhe permitisse destruir a obra do diabo, apelando não a uma intervenção de poder, mas a uma razão de equidade.
Porque, não sem fundamento, o antigo inimigo, em seu orgulho, reivindicava direitos de tirano sobre todos os homens e, não sem razão, oprimia sob seu domínio aqueles que ele tinha prendido ao serviço de sua vontade, depois que eles, por si mesmos, tinham desobedecido ao mandamento de Deus. Por isso não era de acordo com as regras da justiça que ele cessasse de ter o gênero humano como escravo, como o tinha desde a origem, a não ser que fosse vencido por meio do que ele mesmo tinha reduzido à escravidão.
Salvação do mundo
Para esse fim, Cristo foi concebido de uma Virgem, sem intervenção de homem… Ele [o demônio] não pensou que o nascimento de uma criança gerada para a salvação do gênero humano não lhe estava sujeito como o estava o de todos os recém-nascidos. Com efeito, ele o viu vagindo e chorando, viu-o envolto em panos, submetido à circuncisão e resgatado pela oferenda do sacrifício legal. Mais tarde, reconheceu os progressos normais da infância, e até na idade adulta nenhuma dúvida lhe aflorou sobre o desenvolvimento conforme a natureza.
Durante este tempo ele lhe infligiu ultrajes, multiplicou injúrias, usou de maledicências, calúnias, blasfêmias, insultos, enfim, derramou sobre ele toda a violência do seu furor e o pôs à prova de todos os modos possíveis; sabendo com qual veneno tinha infectado a natureza humana, ele jamais pôde crer que fosse isento da falta inicial aquele que, por tantos indícios, ele reconhecia por um mortal.
Ladrão atrevido e credor avaro, ele se obstinou em levantar-se contra aquele que não lhe devia nada, mas exigindo para todos a execução de um julgamento geral pronunciado contra uma origem manchada pela falta, ultrapassou os termos da sentença sobre a qual se apoiava, porque reclamou o castigo da injustiça contra aquele no qual não encontrou falta. Tornando-se, por isso, caducos os termos malignamente inspirados na convenção mortal, e, por causa de uma petição injusta, que ultrapassava os limites, a dívida toda foi reduzida a nada. O forte é atado com os seus próprios laços, e todo o estratagema do inimigo cai sobre a sua cabeça.
Uma vez amarrado o príncipe deste mundo, o objeto de suas capturas lhe foi arrancado. Nossa natureza, lavada de suas antigas manchas, recupera sua dignidade, a morte é destruída pela morte, o nascimento é renovado pelo nascimento, porque, ao mesmo tempo, o resgate suprime nossa escravidão, a regeneração muda nossa origem e a fé justifica o pecador” (Sermão XXII , segundo Sermão do Natal).
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