Necessidade de não adiar nossa conversão
É preciso converter-se, e converter-se logo. É preciso apressar nossa marcha, correr para nossa conversão, diz São João Crisóstomo: Cum opus est, et vehementi cursu (Homil. ad pop.). É preciso dispor-nos prontamente a seguir nossa viagem, porque o caminho é longo e a vida é curta. A vocação[1] de Deus insta-nos; há perigo no adiamento!
Não tardes em converter-te ao Senhor, não adies (a tua conversão) de um dia para o outro, diz o Eclesiástico: Non tardes converti ad Dominum, et ne differas de die in diem (Eclo 5, 8). Quem é aquele que, tendo apanhado uma víbora, não a solta imediatamente? Quem teria em sua casa um inimigo capital, um assassino? Quem aguentaria sustentar o fogo na mão? O pecado mortal é uma víbora, um assassino, um fogo devorador. Por conseguinte, assim que o sintamos em nosso coração, devemos expulsá-lo.
Santo Agostinho declara, com amargas lágrimas, o tempo que tardou em converter-se:
“Ó Formosura, sempre antiga e sempre nova, exclama ele, quanto tardei em vos amar!” (Lib. Confess.).
Por que, pergunta-nos o Senhor no Eclesiástico, por que vós vos atrasais? Vossas almas estão ardendo de sede? Qui adhuc retardatis? Animae vestrae sitiunt vehementer (Eclo 51, 32).
Aquele que concede perdão, diz Santo Agostinho, abre-vos a porta; o que aguardais? Deverias vos regozijar se Ele vos abrisse no dia em que vós O chamásseis. Não chamastes ainda, e já vos abre; e, sem embargo, permaneceis do lado de fora! Portanto, não vos detenhais. Tende compaixão de vossa alma, e tratai de agradar a Deus! Dai essa esmola à vossa alma; não vos dizemos que deveis lhe dar alguma coisa, senão que, pelo menos, não recuseis a Mão que lhe dá[2].
PARA CONVERTER-SE É PRECISO…
1.° Tempo
Aquele que trata de adiar sua conversão fundamenta-se no tempo que lhe resta para viver; espera ter ocasião de fazer penitência: duas coisas muito incertas, e, todavia, duas coisas absolutamente necessárias. Aquele que promete perdão, diz São Gregório, não promete outro dia ao pecador: Qui poenitenti veniam spopondit, pecandi diem crastinum nonpromisit (Homil. XII in Evang.).
Deus vos promete, diz Santo Agostinho, que no dia em que vos converterdes, há de olvidar os pecados cometidos; porém, Ele jamais vos prometeu outro dia de vida: Promisit tibi Deus quoniam quo die conversus fueris, obliviscetur mala tua praeterita; sed numquam vitam crastini diei promisit tibi (Homil. XII, inter 4). Não conhecemos nosso último dia, a fim de que empreguemos santamente toda a nossa vida, afirma o mesmo Santo em outra parte (Serm. XXXIX).
Deus, que promete indulgência ao pecador arrependido, acrescenta aquele ilustre Padre da Igreja, não prometeu outro dia para quem dilata sua conversão: Qui poenitenti promisit indulgentiam, dissimulante diem cratinum non spopondit (Sentent. LXXI).
Não vos glorieis de coisa alguma que deveis fazer no dia de amanhã, dizem os Provérbios, pois não sabeis o que o dia seguinte dará de si: Ne glorieris in cratinum, ignoramos quid superventura parial dies (Pr 27, 1). Cada dia deve estar disposto como se houvesse de ser o último, diz Sêneca: Omnis dies tamquam altimum ordinandus (Epist. XII).
Não tardes em converter-te ao Senhor, não adies (a tua conversão) de um dia para o outro, diz o Eclesiástico: Non tardes converti ad Dominum, et ne differas de die in diem (Eclo 5, 8). Comentando esta passagem, diz São João Crisóstomo: Ninguém sabe o que o espera no dia que ainda não amanheceu; há perigo em demorar, e devemos temer agir assim! A salvação não é certa e nem segura, razão pela qual não seja adiada: Nescit quid paritura sit superventura dies; periculum enim et metus est in differendo, salus vero certa et secura, si nulla sit dillatio (Homil. II, in Epist. II ad Cor.).
O pecador diz:
“Amanhã! Amanhã, converter-me-ei”: Cras, Cras, convertar!
Este adiamento, observa-o Santo Agostinho, mata a muitos; dizem “Amanhã!, Amanhã!” e a porta se lhes fecha inesperadamente; ficam de fora, dando gritos de corvo, porque não souberam gemer com a pomba[3].
Filhos rebeldes, convertei-vos a mim, diz o Senhor por boca de Jeremias: Convertemini, filii, revertentes, dicit Dominus (Jr 3, 14).
É preciso apressar-nos a empregar os meios que Deus nos dá para nossa conversão, temerosos de que nos falte o tempo, se tardamos, diz Santo Agostinho[4].
Estai atentos, acrescenta aquele grande Doutor, e compreendei que é preciso que não nos descuidemos de trabalhar a vinha do Senhor, nem confiemos em que temos de receber a recompensa se somente começamos ao meio dia, ou quase ao terminar a jornada. Se Ele nos prometeu, em verdade, o pagamento, proibiu-nos, entretanto, de ser retardatários. O que haverá de dar e o que haverá de fazer o dono da vinha? Isto preocupa a ele! Quanto a vós, acudi quando sois chamados. Não quereis trabalhar cedo, e ignorais se vivereis até às onze horas! Chamam-vos às seis? Acorrei. Porque despedis Aquele que vos convida? Estai seguros do salário, afirmo isso. Porém, não estejais seguros do dia. Tende cuidado de não vos privar, com vossa demora, daquilo que vos está prometido, se vos apressardes (Serm. LXXXVII de Verbis Evang.).
O pecador que adia sua conversão contando com o tempo, imita a temeridade de Pedro, a quem Jesus Cristo disse: Pedro, tu me renegarás. – Não, Senhor, eu não vos renegarei…
Jesus Cristo disse-nos formalmente a todos: Se não vigiais sem cessar, Eu vos surpreenderei. E atrevemo-nos a responder-Lhe: Não, Senhor, dormiremos a nosso gosto, e Vós não nos surpreendereis; porque estaremos prevenidos; e quando quisermos voltar a Vós, uma Confissão feita com pressa no momento da enfermidade, ou à véspera do dia da morte, salvar-nos-á de vossa Ira.
O quê…? O Filho de Deus declarou que a ciência do tempo e dos instantes concedidos ao homem é um dos segredos mais secretos que o Pai reservou a Si: Non est vestrum nossse tempora ver momenta quae Pater possuit in sua potestate (At 1, 7). E queremos nós descobrir este impenetrável segredo; e fundaremos nossas esperanças em um ponto oculto que se esconde completamente a nossos conhecimentos! Enganamo-nos e, zombando-nos, seduzimo-nos grosseiramente a nós mesmos!
Não vos fieis do tempo que vos engana, é um perigoso impostor; rouba-vos sutilmente, e não vos apercebeis de seu roubo. Por conseguinte, não conteis os dias que Deus vos pode dar, senão apenas aqueles que Ele vos pode tirar; não considereis somente que Deus pode vos perdoar, senão que também pode vos castigar. Não fundeis a vossa esperança nem se baseie o vosso porvir em uma coisa oculta.
O pecador que adia sua conversão, porque conta com o tempo, trata de se enganar; e o tempo ajuda-o em seu engano. Não adverte que o tempo passa rapidamente; porque, ainda que eternamente varie, quase sempre apresenta o mesmo aspecto. Somente os longos anos descobrem a impostura do tempo. A debilidade, os cabelos grisalhos, a alteração visível do temperamento, forçam-nos a notar que uma grande parte de nosso ser evaporou-se e aniquilou-se; porém, o tempo, para enganar-nos, despoja-nos pouco a pouco, e leva-nos tão docemente aos extremos opostos, que chegamos a eles sem os perceber. Assim é que a malignidade do tempo faz correr insensivelmente a vida; e não pensamos em nossa conversão. Caímos, de repente, e sem acreditar, nos braços da Morte, e somente sentimos nosso fim quando o tocamos (Bossuet, Sobre a necessidade de trabalhar para nossa salvação).
Até quanto, filhos dos homens, exclama o mesmo bispo, deixareis agravar vossos corações? Até quando vos deixareis enganar pela ilusão do tempo? Quando reconhecereis de boa fé que a vida é curta? Quereis aguardar o último suspiro? Mas em qualquer estado em que vos acheis, vossa idade já está em flor.
Em sua força, o Apóstolos diz a todos que o tempo se aproxima. Os dias empurram-se uns aos outros: adiamos nossa conversão, e, ao final, não a encontramos.
“Ainda temos tempo… pequemos ainda mais”: aí está o escolho em que se perdem os temerários. E, sem embargo, o último dia está oculto (Ibid.).
Nada depende menos do homem que o tempo futuro; é, pois, uma cegueira terrível diferir nossa conversão, contando com o tempo. Ter segurança naquilo que está absolutamente fora de nosso poder é a mais insigne loucura: a loucura que tem consequências mais impressionantes e irreparáveis.
O tempo compõe-se do passado, do presente e do porvir; o passado já não existe; o presente voa e desaparece, e o incerto porvir, todavia, não chegou. Talvez não chegue para nós; porém, se chega, desde aquele mesmo momento, não mais existe.
Assim, pois, se ouvires hoje a voz do Senhor, diz o Salmista, guardai-vos de endurecer vossos corações: Hodie, se vocem ejus audieris, nolite obdurare corda vestra (Sl 94, 8).
Que faz o pecador que demora a converter-se? Dá a Deus um tempo que há de chegar, um tempo que o pecador não tem, que não lhe pertence, que talvez não terá nunca como um tempo no qual não poderá se converter; porque, diz Bourdaloue, somente podemos nos converter no tempo presente; e o pecador emprega para si o presente; tem o tempo presente, e jamais o dá a Deus. Jamais quer se converter no tempo em que sempre se pode, que é a hora atual; mas insiste sempre em o querer fazer no tempo em que nunca pode, que é o dia de amanhã.
Se aquele que vos deve uma grande quantidade de dinheiro dissesse, quando lho cobrais, amanhã te pagarei, e sempre desse a mesma resposta, deixaríeis de cobrar? Contentar-vos-ia com esse “amanhã”? Logo, faríeis ver que o devedor zomba de vós. Eis aqui, pois, a conduta daqueles pecadores que sempre retardam o momento de sua conversão.
“Para amanhã os negócios!” dizia um rei cego e entregue à suas paixões e às de seus cortesões. Ora, aconteceu que o assassinaram naquela mesma noite. Para que, rei estúpido, guardas para amanhã os negócios? O mesmo dizes também, ó pecador: “Amanhã converter-me-ei”; e esta noite, dentre de uma hora, dentro de um instante talvez, Deus pedirá tua alma! Aguarda, pois, o amanhã para tratar o negócio de tua salvação, e verás o resultado!
Tudo é incerto no tempo que está por vir: sua existência, sua duração, suas condições: é um abismo de incerteza e de obscuridade; e, sem embargo, continuais dizendo:
“Amanhã, eu me converterei,… amanhã tratarei do importante negócio de minha salvação! É certo que sou pecador; sendo assim, é também certo que tenho necessidade de fazer penitência, que necessito de uma penitência certa; e tomo o futuro, que é muito duvidoso, para dedicar-me a esta penitência, da qual não me posso dispensar!”
Se hoje ateia-se fogo em vossa casa, aguardareis até amanhã para pedir socorro e apagá-lo? Se caís hoje na correnteza de um rio aguardareis até amanhã para sair do conflito?
Senhor, diz o pecador, retardando sua conversão, Senhor, sois meu Deus, meu Amor, e quereis que eu volte hoje para Vós; porém, Senhor, tende paciência, eu quero dar ao mundo, aos prazeres e ao demônio o meu corpo, meu coração, minha alma, minha salvação e minha eternidade, entretanto, somente por algum tempo. Quero lhes dar minha juventude e a idade viril; então, dar-vos-ei minha velhice, meus cabelos brancos e os surrados restos de minha vida. Estou certo de que Vós vos contentareis com isso, Senhor, porque sois muito bom. Que insulto? Não equivaleria isso a imitar aos flageladores de Jesus Cristo? Não seria isto cuspir- Lhe o rosto, dar-Lhe bofetadas, acoitar-Lhe etc.? E, contudo, desejais, ó pecadores insolentes e loucos, que Deus sofresse semelhantes ultrajes, e que, depois de uma vida tão criminosa, Ele vos desse a coroa da vida prometida tão somente aos que legitimamente combatem!
Quantas almas perderam o dia de amanhã! E ainda quando tivésseis este dia, saberíeis aproveitar-vos dele para vos converterdes? Não!
Porque não começais hoje? Temeis que vossa penitência seja demasiado demorada por um dia? Sois criminosos, e quereis seguir sendo-o! Sempre quereis tempo, e sempre o perdeis!
Contais com o tempo para vos converter. Ah! Temerários, tereis, tereis tempo bastante? Tereis tempo favorável? Tereis tempo de abrir, enfim, os olhos, fazer uma boa Confissão e arrepender-vos? Tereis sempre à vossa disposição todos os meios necessários para vos converter? Assim, pois, é um grave erro contar com o tempo que é tão incerto, e retardar o momento de converter-se.
PARA CONVERTER-SE É PRECISO…
2.° A graça
Somente o tempo, ainda que supondo que o tivéssemos, não basta para levar a cabo uma conversão. Pecando mortalmente, matamo-nos para a eternidade. E um morto não pode se ressuscitar a si mesmo. A morte do pecado é eterna por sua natureza; e não pode o pecador voltar por si mesmo à vida. Para operar semelhante prodígio, o maior de todos os prodígios, é necessariamente preciso a mão do Onipotente, a graça eficaz.
Deus é a própria Bondade; nossa confiança Nele deve ser grande, inquebrantável. Porém, não se deduz disso, diz o célebre Bourdaloue, que tenhamos direito a contar com Ele, ainda mais se em prejuízo Seu. É certo que sua bondade jamais poderá servir de fundamento à nossa temeridade. Mas, este é, sem embargo, o falso princípio, porque por ele o pecador se lisonjeia de conseguir, um dia, a graça da penitência. Prometer-se esta graça para manter-se no costume do pecado é querer:
1.° Que Deus seja fiel àquele que O despreza;
2.° É querer que Deus seja fiel, à expensas de sua glória, de seu serviço e de seus interesses, e volte contra Si as próprias armas;
3.° É querer Lhe atacar e combater-Lhe com o mais amável de todos os Seus atributos, que é sua Misericórdia; e
4.° Finalmente, é querer que Sua fidelidade torne-O prevaricador e promotor de nossa iniquidade, apesar de ser Deus quem É.
Explicando…
1.° É querer que Deus seja fiel aquele que o despreza; porém Deus disse: Ai daqueles que me desprezam! Não vos desprezarei Eu mesmo, por minha vez? Vae, quis pernis! Nonne et ipse sperneris? (Is 33, 1). Desprezais a Deus, pecadores, quando, resistindo a suas inspirações, continuais a cadeia de vossas iniquidades; quando, depois de Ele haver chamado à porta de vosso coração, vós a mantendes constantemente fechada etc. Deus vos abandonará a vossa própria sorte.
2.° diferir a conversão contando com a graça, é querer que Deus seja fiel à despeito de seus interesses. Com efeito, nós queremos converter-nos quando sejamos um descarte do mundo etc. É assim como há de se tratar a um Deus? É assim como haveremos de atrair-nos e merecer Sua graça?
3.° Adiar nossa conversão contando com a graça, é atacar também a misericórdia de Deus. Como? Não o vês? Pecar contra Deus porque Deus é bom; não parar de O ultrajar. Aguardar e dizer: Não quero, todavia, mudar de vida, porque Deus é misericordioso… ainda tenho tempo… Isso não é zombar Dele? Se Ele fosse inflexível, apressar-nos-íamos em deixar o pecado e a voltar a Ele; e, contudo, sendo Bom, temos adiado! Não é justo e muito natural que um coração que assim zomba da graça, esgote seus mananciais, para abrir a si, de repente, os mananciais das vinganças? (Bourdaloue, Sobre a demora na conversão).
4.° Adiar a conversão porque contamos com a graça, é querer que Deus tome- se promotor e cúmplice de nossas desordens. Com efeito, nós quereríamos um Deus cego, insensível, débil, que deixasse impune o pecado e nos permitisse o deleite, a ira, a intemperança, o esquecimento e a infração de suas leis (Bourdaloue, Sobre a demora na conversão).
É preciso nos servir da graça quando Deus a oferece. De outra sorte, não conseguiremos mais que justiça!
Santo Efrém diz: Ninguém vende suas mercadorias depois de encerrada a feira; e o soldado que não aparece no campo de batalha senão depois de findo o combate, não receberá a coroa, nem louvores; antes, pelo contrário, é desprezado e condenado. Aquele que aguarda para se converter na hora da morte, não é mais que um soldado covarde que merece somente o desprezo de Deus e sua condenação (Trat. de Morte).
Contais com a graça; porém, quanto mais tardais em vos converter, mais obstáculos lhe opondes, multiplicando vossos pecados e aumentando vosso endurecimento; e quanto mais obstáculos vós opondes à graça, menos deveis contar com ela!
PARA CONVERTER-SE E PRECISO…
3.° A vontade
O pecador que adia sua conversão não pode contar com o tempo, nem com a graça. Com que poderá contar? Com sua vontade? Façamos-lhe ver que esta esperança não é menos enganadora que as outras.
É um efeito do pecado, diz Bourdaloue, que nem sequer possa o homem assegurar-se de sua própria vontade. De todas as coisas mundo é a mais deveria estar sob seu poder, e, entretanto, é aquela de que menos ele pode dispor. Melhor podermos contar com a graça que com a própria vontade; porque os socorros de
Deus partem de um princípio imutável, enquanto a nossa vontade inclina-se perpetuamente às mudanças. Deus quer uma vontade iluminada, firme e eficaz; e nós, muitas vezes, nem sequer sabemos o que queremos (Bourdaloue, Sobre a demora na conversão).
“— Quereis vos converter um dia, ou perecer desgraçadamente na impenitência? A partida final liga-vos com o Inferno, e naquilo que quereis. Quereis, pois, vos converter?”
“— Porém, converter-se é arrepender-se e mudar de vida!”.
“— Se quereis vos converter um dia, porque não hoje?
“— Eu bem quisera que fosse hoje, porém, não posso – dizeis – tenho tal empresa, tal ou qual negócio etc.!”.
“- Quereis, pois, cultivar e lisonjear alguma paixão, crendo que tereis vontade de arrepender-vos? Quem já ouviu falar de tal prodígio alguma vez?”
“- Porém, não posso eu dispor de minha vontade?”
“- Sim. E isto é o que nos deve fazer tremer, porque de vós depende… e se vossa vontade é hoje tão ligeira, tão pouco resoluta, tão caprichosa; hoje, que sois menos pecador, menos escravo, e estais menos comprometido etc… Se não vos quereis converter, todavia, vós o podereis querer mais tarde, quando mil obstáculos novos se oponham a isso? Que absurda contradição! Vós o quereis, sereis mais fortes, e vos achareis mais dispostos, quando as paixões vos dominarem inteiramente, e uma cadeia de iniquidades mais abrangente, mais forte e mais pesada vos subjugar dos pés à cabeça? Quando há somente algumas quedas, vós titubeais; que fareis, pois, quando o costume vos possuir? Que loucura deixar que se fortifique um inimigo a quem podemos vencer atualmente, e que será provavelmente invencível mais tarde!”
Dois obstáculos, quase invencíveis, impedem-nos de ser donos de nossa vontade: a inclinação e o hábito.
A inclinação faz o vício amável; o hábito o faz necessário. Não temos em nosso poder o princípio da inclinação, nem o fim do costume. A inclinação acorrenta-nos e lança-nos em um cárcere; o costume afunda-nos nele, fecha a porta e a janela, para não deixar nenhuma saída.
Adulamo-nos de poder vencer tal costume, de poder sair, quando o queiramos, do triste estado do pecado… Que ilusão, que erro!
Com um antigo costume, arraigando-se o crime no coração, a alma não faz mais que débeis e vãos esforços para levantar-se; e tornando sempre a cair sobre suas próprias chagas, sente-se tão extenuada, que a mudança de seus costumes e o seu retorno ao caminho reto, os quais achava tão fáceis, começam a parecer-lhe impossíveis.
Assim é que esta conversão, que, embora não a querendo, vos convenceis de levardes a cabo mais tarde, vós a querereis no porvir ainda menos do que agora. Se não quereis vos converter agora, quando estais ligados por débeis laços, vós o querereis quando vos achardes ligados com indissolúveis laços, e quando tenhais perdido vossas forças e os mil meios que hoje tendes, e mais tarde não os tereis?
Por outro lado, jamais podereis ter vontade de vos converter se Deus não vos ajudar a inclinar esta vontade depravada e endurecida, até alcançardes a vossa salvação. Deus porventura tornou-Se vosso devedor de tal auxilio? Ele vo-lo concederá? Vós o mereceis depois de O terdes crucificado todos os dias? E se Deus Se retirar, não estará tudo perdido para vós? Se Deus Se retirar, jamais voltareis a ver nem encontrareis vossa pretendida vontade que hoje se retira. Desprovidos, então, de tempo, de graça e de vontade, vivendo sem Deus, morrereis sem Deus, morrereis na impenitência final, e o Inferno será o prêmio terrível, muito merecido, enfim, pela fatal demora em vossa conversão.
Desgraças que a demora na conversão ocasiona Pecadores, vós que evitais vossa própria conversão, não escapareis dos terríveis e justos castigos do Céu…
Qual é o Deus, pergunta Santo Agostinho, que pareça para vós tão misericordioso, que não vejais Nele sua Justiça? Quando tiverdes amontoado tesouros de Ira para o dia das vinganças, não achareis a justiça Daquele cuja bondade haveis desprezado? Non sic tibi videatur Deus misericors, ut non videatur et justus. Cum tibi thesaurizaveris iram in die irae, nonno experieris justm quem contempsisti benignum? (Serm.).
Deus é paciente porque é eterno. Porém, como disse São Jerônimo, a flecha é arrojada com tanto mais vigor quando mais esticada estiver a corda do arco; assim sucede com o juízo de Deus: quanto mais adiado parece, mais tremendo será no Juízo, para o pecador obstinado e endurecido: In arcu quanto longius trahitur chorda, quanto de eo districtior exibit sagitta, sic exremi judicii dies, quanto longius differtur ut veniat, tanto, cum venerit, de illo districtior sententia procedet (Comment. in Espist. ad Rom.).
A cólera divina avança a passos lentos para exercer a vingança, diz São Lourenço Justiniano; porém, compensa o adiado castigo com a gravidade do suplício: Lento gradu ad vidinctam tui procedit ira divina; tarditatemque supplicii gravitae compensat (In Ligno Vitae, c. IV).
O Altíssimo, acrescenta aquele Santo, é paciente para castigar; porém, condena mais severamente, por não se haverem convertido, aqueles que Ele espera por longo tempo para que se convertam. E, quanto mais Ele os aguarda, a fim de que se corrijam, com menos misericórdia os julgará por não terem querido mudar de vida[5].
Não vos queirais enganar a vós mesmos, diz São Paulo aos Gálatas: Deus não pode ser zombado: Nolite errare; Deus non irridetur (Gl 6, 7). Não digais: Ó, a misericórdia do Senhor é grande; Ele perdoará nossos muitos pecados. Porque tão prontamente como exerce sua misericórdia, exercerá sua indignação; e, com esta, Ele tem fixos Seus olhos sobre o pecador[6].
Não confieis em vossas riquezas para prescindir de Deus, e não digais: Tenho tudo aquilo de que necessita minha vida; porque basta isso para vos condenar no tempo da vingança.
Tendes com que viver; porém, tendes com o que morrer? De que serve ao homem, diz Jesus Cristo, o ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? Quid prodest homini si mundum uiversum lucretur, animae vero usa detrimentum patiatur? (Mt 16, 26). De que serviram ao ímpio Baltasar suas riquezas e grandezas quando foi pesado e considerado demasiado leve para o Céu? Appensus est in statera, et inventus est minus habens (Dn 5, 27).
Não sigais, achando-vos com força, os maus desejos de vosso coração; nem digais tampouco: “Que poderoso sou!” ou “Quem me obrigará a dar contas de minhas ações?” Porque o Deus vingador Se fará justiça. Não digais: Pequei, e que mal me sucedeu? Não tardeis em vos converter ao Senhor, e não adieis isso dia após dia; porque Sua ira virá de repente; e, no dia da vingança, vos perderá[7].
Pecadores impenitentes, escutai estas terríveis palavras do Apóstolo das Nações: Desprezais as riquezas da bondade de Deus, de sua paciência e de sua larga tolerância? Ignorais que a bondade de Deus vos convida à penitência? E, sem embargo, pela dureza de vosso coração e por vossa falta de arrependimento, amontoais um tesouro de cólera para o Dia da Ira e da manifestação do justo juízo de Deus, que dará a cada qual segundo suas obras, premiando com a vida eterna aqueles que, com a perseverança das boas obras, buscam a glória, a honra e a imortalidade; porém, sobre os espíritos de contenda e de obstinação, que não obedecem à verdade e creem na iniquidade, cairão a ira e a indignação, a tribulação e a angústia[8].
Pecadores, ó vós que diferis vossa conversão, não vos lisonjeeis da impunidade que pareceis desfrutar; com um Deus tão justo, nada fica sem recompensa ou castigo. Ademais, a impunidade atual da qual vos gabais é o mais terrível castigo que Deus pode vos impor; porque esta impunidade atual e aparente é a cegueira espiritual e o endurecimento do coração; castigos quase tão terríveis e tremendos como os mesmos fogos do Inferno.
Mesmo que não veja nem sinta nenhuma pena, a alma pecadora convence-se, diz Santo Agostinho, de que Deus não a julga. Enquanto que, pelo contrário, abusar da paciência de Deus, e não querer compreender a bondade Daquele que não nos castiga no momento, já é uma espantosa condenação[9].
Deus, diz Boécio, é muito paciente; parece que não nota as atrozes ofensas e as blasfêmias dos pecadores, pois é onipotente em Si mesmo e em todas as coisas; porque a paciência é a potência em ação; enquanto que a impaciência é sinal de impotência (Lib. III. de Consolat.).
Deus reina nos homens somente de duas maneiras: reina nos pecadores convertidos, porque se submetem voluntariamente; reina nos pecadores condenados, porque os submete, a seu pesar. Naqueles há um reino de paz e de graça; nestes, um reino de rigor e de justiça; porém, em todas as partes há um reino soberano de Deus, porque os convertidos praticam o que Deus manda, e os condenados sofrem o suplício que Deus lhes impõe. Deus recebe homenagens dos primeiros, e faz justiça aos outros.
Pecadores a quem Deus chama à penitência, e ainda resistis à Sua voz, vós vos achais entre dois extremos; não fazeis nem sofreis aquilo que Deus quer, desprezais a Lei, e não sofreis a pena; desprezais o atrativo, e não vos sobrecarrega a ira. Desafiais até a Bondade que vos atrai, até a Paciência que vos aguarda: viveis como donos absolutos de vossas vontades, independentes de Deus, sem observâncias particulares, sem sofrer nada delas, e Ele não reina sobre vós, nem por vossa obediência voluntária, nem por vossa sujeição forçada. É um estado violento, eu vo-lo digo, que não pode subsistir por muito tempo. Deus tem pressa em reinar sobre vós. Vede, com efeito, como Ele vos pressiona.
Quantos doces convites?
Quantas terríveis ameaças?
Quantas secretas advertências?
Quantas nuvens distantes?
Quantas tempestades próximas?
Observai como Ele desconsidera vossas desculpas; não permite nem que isto termine Seus negócios, nem que aquele outro venha a fechar Seus olhos de Pai (Lc 9, 59).
Outro disse-lhe: Eu vos seguirei, Senhor; porém, permiti despedir-me primeiramente de meus parentes. Jesus respondeu-lhe: Aquele que põe a mão no arado e volta os olhos para trás, não é apto para o reino de Deus (Lc 9, 61-62).
Toda tardança é importuna: tanta pressa tem de reinar sobre vós! Se não reina por sua bondade, está bem;… contudo, mais rápido do que pensais, Ele quererá reinar por sua justiça, porque Seu é o império, e Se pertence a Si mesmo, e é próprio de sua grandeza estabelecer logo seu Reino (Bossuet).
Obstáculos na conversão e causas da demora para atendê-la. Há três classes de homens que adiam sua conversão:
1.° Alguns nunca pensam nela;
2.° Outros esperam sempre; e
3.° Os terceiros somente cuidam muito debilmente deste assunto.
E eis aqui três grandes obstáculos para sua conversão. Estas três classes de homens desprezam sua verdadeira conversão.
Os primeiros, endurecidos em seus crimes, julgam sua conversão como coisa impossível, e não cuidam de dedicar-se a ela.
Os segundos iludem-se que a conversão é demasiadamente fácil, e adiam-na de dia em dia, como obra que estivesse ao alcance de suas mãos, e que a farão quando bem lhes parecer.
Os terceiros, convencidos do perigo que produzem os adiamentos, começam; porém, começando com frouxidão, deixam-na sempre imperfeita. Eis aqui três terríveis defeitos que é preciso evitar e destruir.
Ouvi o que diz Santo Agostinho acerca dos obstáculos que lhe impediam de converter-se: os vazios dos vazios e as vaidades das vaidades me continham: Retinebant me ungae ungarum, et vanitas vanitatum (Lib. VIII, Confess., c. XI). Minhas antigas amigas (os deleites) agitavam minha veste carnal, e diziam-me com um doce murmúrio: Tu nos abandonarás? E, se assim o fazes, que será de nós sem ti? E, se assim o fazes, não te será mais permitido isto… nem aquilo…? E que cruéis eram para mim as palavras isto e aquilo. Ah, Senhor, vossa misericórdia afaste para longe de minha alma o que aquelas amigas me sugeriam: quantas infâmias tratavam de inspirar-me, quantas torpezas! Eu as escutava, todavia, um pouco. Não me faziam guerra frontalmente; porém, elas murmuravam por trás de mim; e, enquanto eu me afastava, tratavam de fazer-me voltar a cabeça para que, entretanto, as olhasse. Eu titubeava para arrancar-me delas, sacudir seu jugo, e ir-me aonde Deus me chamava; elas detinham-me, e o violento hábito me dizia: Pensas que poderás passar e viver sem elas? Porém, sua linguagem era néscia e fastidiosa para mim[10].
Aquele que conheça as trevas de sua cegueira, diz São Gregório, aquele que conheça a luz eterna que lhe falta, grite desde o fundo de suas entranhas como o cego de nascença: Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim! Porém, ouçamos o que o Evangelho acrescenta falando deste cego que levantava a voz: E aqueles que O acompanhavam repreendiam-lhe para que se calasse: Et qui praeibant, increpabant eum, ut taceret (Lc 18, 39).
O que significam aqueles que precedem a Jesus que chega, senão a multidão de nossos desejos carnais, e o tumulto dos vícios? Antes que Jesus Cristo entre em nosso coração, estes desejos agitam nosso espírito com tentações, e turbam a voz de nossa alma na oração. Porém, ouçamos o que fazia, então, aquele cego que desejava recobrar a vista. Gritava muito mais forte: Filho de Davi, tem piedade de mim![11]. Façamos o mesmo em todas as ocasiões em que queiram nos deter quando nos dirigimos a Deus (In hoc versu Evang.).
O que temos de fazer para apressar nossa conversão?
Sigamos escutando a Santo Agostinho: Se, por um lado, diz ele, os vazios dos vazios, as vaidades das vaidades, minhas antigas amigas, o poder do cruel costume, tratavam de deter-me na escravidão e desgraça; por outro lado, no lugar para onde voltava meus olhares e onde desejava ardentemente chegar, a esta dignidade da continência, plena de serenidade e de carícias celestes, instava-me para que acorresse a ela, tirando-me toda dúvida e vacilação, e alargava-me para receber e abraçar seus piedosos e santos braços carregados de almas plenas de bons exemplos. Aqui, apresenta-me uma multidão de jovens e donzelas, uma juventude numerosa; ali, todas as idades, e respeitáveis viúvas, e todas as virgens, e, em todos, uma castidade, uma pureza fecundas. Manifestava-se para mim aquela divina continência como uma mãe fecunda que concebeu e deu vida a esta numerosa família de eleitos, e ela concebe-os de vós, ó Senhor, de vós, seu divino Esposo. E zombava de mim com um sorriso de doce exortação, dizendo-me: Então, não hás de poder tu aquilo que estes e estas podem? Podem eles fazer, por si mesmos, aquilo que fazem? O Senhor Deus entregou-me a eles para fazer almas para o Céu. Porque titubeias e não te postas solidamente? Lança-te a Ele; nada temas, Ele não se retirará, não te abandonará para deixar-te cair. Lança-te pleno de segurança e de confiança em Seu seio; Ele te receberá e te curará. E eu, que escutava ainda as loucuras e bagatelas, envergonhava-me de minhas vacilações. A continência prosseguia: Fecha os ouvidos, não atendas a esses membros impuros, a esta carne de pecado; mortificai-os; falam-te de prazeres mentirosos que não estão vinculados à Lei do Senhor, e que não são nada, comparados com o prazer do cumprimento desta Lei. Este combate das paixões contra as virtudes que tinha lugar em mim, era obra minha contra mim mesmo (Lib. VIII, Confess. c. CXI).
É certo que o pecador que adia sua conversão experimenta o mesmo combate que experimentava Santo Agostinho, ainda pecador.
Por um lado, a concupiscência, as paixões, os prazeres, a carne, o mundo e o demônio querem detê-lo; por outro lado, a formosura da virtude, os remorsos, a Palavra de Deus, as santas inspirações, a graça, o temor da morte, do juízo e do Inferno, a felicidade do Céu e a duração da eternidade, pressionam-lhe a que se converta.
Assim, pois, aquilo que temos de fazer é voltar a Deus, é fechar os ouvidos e o coração à voz enganosa e sedutora da concupiscência, das paixões, do demônio, do mundo e da carne, e abrir-lhes à voz da virtude, da graça etc.; não titubear, e querer, com uma vontade firme e decidida, como o filho pródigo, Davi, São Paulo…
Ainda quando os pecadores tenham caído por própria culpa, é preciso não lhes deixar perecer: tenhamos compaixão deles, demos-lhes a mão. E como é necessário que os ajudemos também com um grande esforço. Para dar-lhes suficiente valor, façamos, sobretudo, desaparecer de sua mente a falsa ideia de que não se podem vencer as inclinações e os hábitos viciosos. Convençamos-lhe de que sua conversão é possível com a graça e a vontade.
Segundo Santo Agostinho, duas coisas são necessárias para que o homem possa levar a cabo um empreendimento. É preciso:
1.° Que tenha em si mesmo um poder, uma força, e uma virtude proporcionada à execução; e
2.° Que o objeto lhe agrade. Com efeito, não podendo operar o coração do homem sem algum atrativo, pode-se dizer, de certo modo, que aquilo que não lhe agrada é-lhe, de fato, impossível (Homil.).
Disso decorrem as duas razões que levam a maior parte dos pecadores endurecidos a desesperar de sua conversão. Primeiramente, seus maus costumes, tantas vezes vitoriosos de seus bons desígnios, fazem-lhe crer que não há força contra eles. Logo, supondo que creiam poder vencê-los, esta vida prudente e moderada que se lhes propõe, parece-lhes insípida, sem atrativo e sem nenhuma doçura, de maneira que não se sentem com bastante valor para abraçá-la.
Pecadores, a graça do Senhor dá força e poder para vencer as más inclinações. Ânimo! Esta graça destruirá vossa repugnância, e fará com que leveis com felicidade uma vida nova.
A boa vontade, a oração, a Confissão, eis aqui os meios que nos guiarão a Deus, e alcançarão vossa conversão e o perdão. Esses meios dar-vos-ão as delícias que se experimentam na paz de uma consciência inocente, e eles vos assegurarão a felicidade do Céu.
Fonte: https://rumoasantidade.com.br/demora-na-conversao/