Muitas pessoas, quando sua consciência lhes acusa de terem cometido pecado mortal, desistem de rezar. Pensam que, como não estão em estado de graça, Deus as abandonou totalmente.
Isso é verdade? Não, não necessariamente é assim que acontece. Há nuances, e vamos explicar.
Veja essa passagem da Bíblia:
E os fariseus, vendo isto, disseram aos seus discípulos: Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?
Jesus, porém, ouvindo, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos, mas, sim, os doentes.
Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento. - Mt 9,11-13
Como Jesus - e a Igreja - poderia atrair os doentes (pecadores) para Si, se vira as costas para eles durante a enfermidade? Isso não faria sentido! Deus ouve as orações sinceras de qualquer um.
Mas vale notar: quanto mais a pessoa está apegada ao pecado (e quanto mais grave for o pecado), maior o abismo que a afasta da luz do Senhor.
Pense em uma pessoa que está em pecado grave, e está plenamente confortável em seu pecado: não tem nem ao menos o coração quebrantado. Não tem um pingo de dor pelo mal que cometeu (ou que ainda comete). Nesse caso, não é Deus que não a escuta... É ela quem está SURDA para Deus.
A realidade espiritual não é em preto e branco: tem tons de cinza. Assim como há graus de santidade (uns santos são mais santos do que os outros), também há níveis de gravidade do pecado mortal.
Os pecados mortais possuem infinitas variantes que afundam a alma mais ou menos no Inferno. E tem mais...
Segundo o Catecismo, uma pessoa pode estar em situação objetiva de pecado mortal (por exemplo, é prostituta), mas ao mesmo tempo estar cercada por uma série de fatores condicionantes que amenizam a sua culpa - até o ponto de ela, aos olhos de Deus, estar efetivamente em estado de graça:
A imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais. (CIC, 1735)
Por exemplo: prostituição é pecado grave. Logo, a prostituta de nome X está em uma SITUAÇÃO OBJETIVA de pecado grave. Porém, X foi vendida pelos pais desde criança para um bordel, e não conhece outra vida. se viciou em drogas e álcool para suportar sua rotina. Por causa também do estigma social, ela não sabe como largar a prostituição. Pode ser que Deus julgue tudo isso como atenuantes válidos, e que X esteja em SITUAÇÃO SUBJETIVA de estado de graça (que a Igreja não tem como julgar nem afirmar, mas que Deus vê).
Essa realidade é iluminada pelos evangelhos. Jesus tratava amavelmente vários tipos de pecadores: pagãos, corruptos (cobradores de impostos), adúlteras e hereges (samaritanos). O pecado deles era grave, mas o Senhor não se exasperava com eles. Por exemplo: Jesus falou que a samaritana teve cinco maridos, e que sua atual união era ilegítima... mas não falou de modo rude.
Ao mesmo tempo, Jesus lançava duras palavras contra os fariseus hipócritas, e também aos ricos que não se apiedavam dos pobres. Nisso, vemos que há pecados graves que são mais graves do que os outros. E há pessoas em situação de pecado grave que podem ter a sua culpa atenuada pelos mais diversos motivos (que às vezes só Deus conhece).
No mais, é só usar um pouco o bom senso e a imaginação. Pense em uma pessoa muito rica, que explora gravemente seus empregados, assedia sexualmente suas subordinadas e não ajuda os pobres. Em suas orações, essa pessoa pede a graça de ter saúde e vida longa. Não podemos sondar os desígnios misteriosos de Deus, mas eu ACHO que há grandes chances de essa oração ficar no vácuo.
Agora, imagine um homem ou mulher em segunda união - situação objetiva de pecado mortal. Essa pessoa sente sincera dor no coração por não poder comungar, e procura ser uma boa cristã nos demais âmbitos da vida: ajuda os pobres, faz penitência, tem vida de oração, procura não fofocar etc. Todas as noites, ela reza, pedindo que Deus lhe ajude a sustentar financeiramente a família, e dê saúde a todos. Será que essa oração será bem acolhida no Céu? Eu creio que sim.
MILAGRES ALCANÇADOS POR PECADORES
Obviamente, a oração dos que estão em estado de graça tem mais poder. É exatamente por isso que pedimos a intercessão dos santos falecidos, e também é por isso que as pessoas com fama de serem bons cristãos recebem muitos pedidos de oração. Os fiéis naturalmente entendem que uma pessoa que vive em fidelidade ao Senhor tem maior poder de intercessão.
Mas um pecador também pode alcançar graças, sobretudo quando Deus julga que há fatores que atenuam a gravidade de suas faltas.
Os atenuantes são circunstâncias que reduzem a culpa pelo mal praticado. Muitas vezes, só Deus é capaz de ver e medir essas circunstâncias.
As Escrituras dizem:
Deste modo, sereis os filhos do vosso Pai do céu, pois Ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos". - Mt 5,45
Uma das cantoras mais famosas do século passado foi a francesa Edith Piaf. Logo após seu nascimento, ela desenvolveu uma catarata e ficou cega por quase três anos.
Sua tia, uma cafetina, foi em peregrinação a Lisieux para pedir a Santa Teresinha a cura da menina. E o milagre foi obtido!
Sobre esse episódio, observa o escritor Fabrice Hadjadj: "Como a santa, do céu de sua misericórdia, não teria se comovido com esse bordel refeito em Ave-Maria?" (no livro "A profundidade dos sexos").
Há outro caso interessante, ocorrido no Brasil. O milagre que levou Santo Antônio de Sant"Anna Galvão aos altares agraciou o menino Enzo de Almeida Galafassi. E quem rezou pedindo a intercessão do santo foi a mãe de Enzo, que não era casada com o pai do menino. O casamento, ocorrido no Mosteiro da Luz (construído por Frei Galvão) aconteceu sete anos após o nascimento de Enzo.
Pois então... Nada disso impediu que as preces daquela mãe fossem bem acolhidas no Céu.