Qual meio Deus usou para nos revelar a sua Palavra, de modo infalível? Alguns dizem: somente por meio da Bíblia. Mas quem afirma isso está em contradição com a própria Escritura, que diz que a Tradição também é um meio de transmissão do Evangelho.
“Eu vos felicito por vos lembrardes de mim em toda ocasião e conservardes as tradições tais como eu vo-las transmiti.” (I Cor 11,2)
Que tradições seriam essas a que São Paulo estava se referindo? Bem, ele não falava de tradições humanas, nem somente de seus escritos, mas de toda Palavra de Salvação proferida por ele e pelos demais Apóstolos. Confiram:
“Assim, pois, irmãos, ficai inabaláveis e guardai firmemente as tradições que vos ensinamos, de viva voz ou por carta.” (II Tes 2,15)
Ou seja, a própria Bíblia (Revelação escrita) diz que a Tradição (Revelação oral) também é um meio de Revelação da Palavra de Deus. São Paulo coloca esses dois meios de Revelação lado a lado, mostrando que têm o mesmo valor. O Apóstolo João confirma essa doutrina:
“Apesar de ter mais coisas que vos escrever, não o quis fazer com papel e tinta, mas espero estar entre vós e conversar de viva voz, para que a vossa alegria seja perfeita.” (II João 1,12)
Essa passagem explicita algumas verdades importantíssimas:
nem tudo o que o Apóstolo considera necessário ensinar ao povo ele registrou por escrito;
a alegria dos cristãos só alcança a perfeição quando, além de estudar as Escrituras, eles acolhem os ensinamentos apostólicos transmitidos oralmente pelas legítimas autoridades da Igreja – ou seja, a Tradição.
O Apóstolo João, em outra passagem, diz que nem tudo o que Jesus fez e ensinou foi registrado nos Evangelhos. Sendo assim, obviamente, muitas coisas que aprenderam de Jesus foram comunicadas à Igreja de forma oral.
"Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever." (João 21,25).
“A” TRADIÇÃO E “AS” TRADIÇÕES
A Tradição a que estamos nos referindo aqui é a Sagrada Tradição, a Palavra de Deus que os Apóstolos receberam de Cristo e transmitiram oralmente à Igreja. Esta não deve ser confundida as tradições estabelecidas pelos homens da Igreja, ao longo do tempo.
É preciso distinguir, desta Tradição, as «tradições» teológicas, disciplinares, litúrgicas ou devocionais, nascidas no decorrer do tempo nas Igrejas locais. Elas constituem formas particulares, sob as quais a grande Tradição recebe expressões adaptadas aos diversos lugares e às diferentes épocas. É à sua luz que estas podem ser mantidas, modificadas e até abandonadas, sob a direção do Magistério da Igreja.
- Catecismo da Igreja Católica, item 83
Um exemplo de tradição disciplinar: para que um candidato ao sacerdócio seja ordenado, atualmente, ele precisa ingressar no seminário e estudar ao menos seis anos. Mas já houve tempos em que um presbítero era eleito de outros modos, até mesmo por aclamação popular (foi assim com Santo Agostinho).
Um exemplo de tradição devocional: a oração do Rosário. Essa devoção nasceu no século XIII, quando a Virgem Maria apareceu a São Domingos de Gusmão, recomendando o Rosário como arma para a conversão dos hereges e pecadores.
Um exemplo de tradição litúrgica: nas igrejas católicas de rito bizantino, sempre que está de pé, o bispo fica sobre o Aetos (foto acima). Trata-se de um tapete redondo, que traz o desenho de uma águia sobrevoando uma cidade. A cidade murada representa a Diocese; a águia é um lembrete de que, "como uma águia pode ver claramente ao longo de distâncias, por isso deve um bispo supervisionar todas as partes da sua diocese", e defender os fiéis nela contidos (Fonte: Orientale Lumen).
A PATRÍSTICA
A Tradição oral, em grande parte, foi registrada nas atas dos Concílios e nos escritos das primeiras gerações de padres e bispos – os chamados Padres da Igreja. O conjunto da obra desses líderes da igreja primitiva se chama Patrística.
Os escritos patrísticos, considerados em seu conjunto, nos permitem saber como as primeiras gerações de padres da Igreja interpretavam as Escrituras. Os pontos de fé em que vários Padres estão de acordo revelam a doutrina universalmente aceita na igreja primitiva. Obviamente, tal interpretação serve como um guia para a Igreja, uma luz para a correta interpretação da Bíblia.
Portanto, a própria Escritura ensina que são duas as FORMAS DE TRANSMISSÃO da Palavra infalível de Deus: a Bíblia e a Tradição. A Igreja é a guardiã dessa Palavra revelada, e a transmite fielmente ao povo de Deus por meio do Sagrado Magistério.
São Paulo recomenda e ordena a manutenção da Tradição Oral. Em 1 Cor 11,2, por exemplo, lemos: “Eu vos felicito por vos lembrar de mim em toda ocasião e conservardes as tradições tais como eu vo-las transmiti” 4. São Paulo está claramente recomendando que mantenham a tradição oral, e deve ser notado em particular que ele congratula os fiéis por fazê-lo (Eu vos felicito…).
Também é explícito no texto o fato de que a integridade desta Tradição oral apostólica era claramente mantida, da mesma forma como Nosso Senhor havia prometido, sob o auxílio do Espírito Santo (cf. Jo 16,13).
Talvez o mais claro apoio bíblico para a Tradição oral seja 2 Ts 2,15, onde os cristãos são enfaticamente advertidos: “Assim, pois, irmãos, ficai inabaláveis e guardai firmemente as tradições que vos ensinamos, de viva voz ou por carta”. Esta passagem é significante porque:
a) mostra uma tradição oral apostólica vivente,
b) diz que os cristãos estarão firmemente fundamentados na fé se aderirem a estas tradições e
c) claramente afirma que estas tradições eram tanto escritas como orais. A Bíblia distintamente mostra aqui que as tradições orais – autênticas e apostólicas em sua origem – deveriam ser seguidas como componente válido do Depósito da Fé, então por quais razões ou desculpas os protestantes a rejeitam? Com que autoridade podem rejeitar uma exortação clara do apóstolo Paulo?
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Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição
Além do mais, devemos considerar o texto desta passagem. A palavra grega krateite, traduzida aqui como “guardar”, significa “estar firme”, “forte”, “prevalecer” 5. Esta linguagem é enfática, e demonstra a importância da manutenção destas tradições. Obviamente, devemos diferenciar o que seja Tradição (com T maiúsculo), que é parte da revelação divina, das tradições da Igreja (com t minúsculo) que, mesmo que sejam boas, desenvolveram-se tardiamente e não fazem parte do Depósito da Fé.
Um exemplo de algo que seja parte da Tradição seria o batismo infantil; um exemplo de tradições da Igreja seria o calendário das festas dos santos. Tudo que venha da Sagrada Tradição é de origem divina e são imutáveis, enquanto que as tradições da Igreja são cambiáveis pela Igreja. A Sagrada Tradição serve-nos como regra de fé por mostrar no quê a Igreja tem consistentemente crido através dos séculos e como ela sempre entendeu uma determinada parte Bíblica. Uma das principais formas pelo qual a Sagrada Tradição foi transmitida a nós está nas doutrinas dos textos litúrgicos antigos, o serviço divino da Igreja.
Todos já notaram que os protestantes acusam os católicos de promoverem doutrinas novas e anti-bíblicas baseadas na Tradição, por afirmarem que tal Tradição contém doutrinas que são estranhas à Bíblia. Entretanto, esta acusação é profundamente falsa. A Igreja Católica ensina que a Tradição Oral não contém nada que seja contrário à Tradição Escrita. Alguns pensadores católicos afirmam, inclusive, que não há nada na Tradição Oral que não seja encontrado na Bíblia, mesmo que implicitamente ou em formas seminais. Certamente as duas estão em perfeita harmonia e complementam uma à outra. Para algumas doutrinas, a Igreja faz uso da Tradição mais que pelas Escrituras para seu entendimento, mas mesmo estas doutrinas estão incluídas nas Sagradas Escrituras. Por exemplo, as doutrinas seguintes são preferencialmente baseadas na Sagrada Tradição: batismo infantil, o cânon das Escrituras, o domingo como Dia do Senhor, a virgindade perpétua de Maria e a assunção de Maria.
A Sagrada Tradição complementa nossa compreensão da Bíblia ao mesmo tempo que não constitui uma fonte extra-bíblica de revelação, com doutrinas novas ou estranhas a ela. Muito pelo contrário: a Sagrada Tradição age como a memória viva da Igreja, relembrando-a constantemente o que criam os cristãos antigos, como entendiam e interpretavam as passagens bíblicas 6. De certa forma, é a Sagrada Tradição que diz ao leitor da Bíblia: Você está lendo um livro muito importante, que contém a revelação de Deus aos homens. Agora deixe-me explicá-lo como ela sempre foi entendida e praticada pelos cristãos desde o início dos tempos.
Ouça também: O que é a Sagrada Tradição Apostólica?
Qual é a relação entre a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura?
Notas
4 A palavra traduzida como ordenança é também traduzida como ensinamento ou tradição, por exemplo, a NIV traz ensinamento com uma nota dizendo: “ou tradição”.
6 Um exemplo desta forma interpretativa envolve Ap 12. Os Padres da Igreja entenderam a mulher vestida de sol como referência à Assunção da Virgem Maria. Alguém afirmar que esta doutrina não existia até 1950 (o ano em que o Papa Pio XII definiu-o como dogma de fé) corresponde a uma grande ignorância de história eclesial. Essencialmente, a crença surgiu desde o início, mas não fora formalmente definida até o século 20. Deve-se saber que a Igreja geralmente não costuma definir uma doutrina formalmente a não ser que esta seja questionada por correntes heréticas perigosas. Tais ocasiões requerem uma necessidade oficial de definir parâmetros sobre a doutrina em questão.
Fragmentos da obra “Scripture Alone? 21 Reasons to reject Sola Scriptura” de Joel Peters, traduzido e editado em português pelo Apostolado Veritatis Splendor na forma de ebook com o título “Somente a Escritura?”. Tradução de Rondinelly Ribeiro Rosa. Pgs 15-17.
Joel Peters
Fonte: https://veritatis.com.br
https://cleofas.com.br/a-biblia-indica-que-devemos-aceitar-a-tradicao-oral/