RIO — Inspirado nos principais ensinamentos de Cristo, que pregava tolerância e defendia os oprimidos, o desfile da Mangueira em 2020 levará para a Sapucaí uma Maria Madalena vestida com as cores do arco-íris LGBT e uma Nossa Senhora das Dores de luto, com uma bandeira do Brasil estilizada e a frase “estado assassino” no lugar do “ordem e progresso”.
Essas são algumas das cenas que prometem impacto nas fantasias da verde e rosa no próximo carnaval, como parte da proposta engajada do carnavalesco Leandro Vieira para o enredo “A verdade vos fará livre”, que apresentará a alegoria de um Jesus que vive nos tempos atuais.
Esse Cristo que o artista levará à Avenida será um ser político, menos ligado a seu significado religioso. Apesar disso, Leandro defende que o Salvador encontraria hoje um mundo com desafios parecidos com os de dois milênios atrás. É como a Nossa Senhora das Dores do carnavalesco se torna Maria das Dores Brasil para representar o sofrimento da mãe de Cristo e também o de milhares de outras mães nas periferias brasileiras, que tiveram filhos vítimas da violência.
— Há 2019 anos, Cristo nasceu numa família pobre da Galileia. No enredo, nasce pobre do Morro da Mangueira, e Maria enfrenta as mesmas aflições da original, que viu o estado torturar e matar seu filho. A Maria das Dores Brasil é uma mãe favelada, periférica, de luto pela perda do filho — diz Leandro.
Esse pesar estará expresso na bandeira brasileira alegórica, que integra a fantasia, uma releitura do pavilhão, em verde, rosa e branco, com as palavras “índios, negros e pobres” do desfile da Estação Primeira deste ano. Em fevereiro do ano que vem, a bandeira terá o preto do luto misturado às cores da escola.
— Produzir bandeiras é um dado muito presente na produção artística brasileira, de Hélio Oiticica a Henfil e a Abdias Nascimento — observa Leandro.
Sem pecados
Já Maria Madalena estará representada numa ala exclusivamente masculina, com auréola, peruca roxa e manto de arco-íris. O carnavalesco afirma que o intuito é levantar o debate sobre a intolerância ligada a questões de gênero e sexualidade. A escolha da personagem bíblica tem seus porquês:
— No imaginário popular, Maria Madalena ficou muito associada ao pecado. Mas sua figura histórica é a da mulher oprimida que foi defendida por Cristo. Ela seria apedrejada, e Jesus disse: ‘quem não tem pecado que atire a primeira pedra’. Cristo sempre se colocou ao lado dos oprimidos, nunca dos opressores.
E é esse, segundo Leandro, o princípio do enredo da Mangueira: Cristo como difusor da fraternidade e combatente da opressão. Para carnavalizar essa história, além de sua bagagem familiar cristã, o artista conta que se debruça sob conceitos de teologia modernos e mantém contato com padres, pastores evangélicos e líderes de religiões de matriz africana.
No enredo “Só com a ajuda do santo” de 2017, Leandro já tinha abordado a fé. Na época, levou à Sapucaí um tripé com um Cristo crucificado e Oxalá. A Mangueira foi quarta colocada, mas, a pedido da Arquidiocese do Rio, a imagem não retornou no Desfile das Campeãs, um dos muitos capítulos de impasses entre a Igreja e as escolas de samba.
Procurada, a Arquidiocese não se manifestou. Mas a teóloga Rose Costa, professora da PUC-Rio, diz não ver motivos para polêmicas:
— Acho que é uma abordagem bastante correta e coerente com o que está no Evangelho. Maria Madalena, por exemplo, foi marginalizada em seu tempo, considerada adúltera, e foi acolhida por Jesus, que é, sim, um ser político, que questionou a estrutura de poder de seu tempo.